A Inspecção Educativa à luz do ordenamento jurídico cabo-verdiano

A Inspecção Educativa à luz do ordenamento jurídico cabo-verdiano

I. A INSPECÇÃO EDUCATIVA – COMPETÊNCIAS E ATRIBUIÇÕES

Hoje em dia, porventura mais do que nunca, evidencia-se a importância do controlo da performance das instituições educativas, tendo em conta a necessidade de o processo de democratização do acesso à educação à escala planetária se fazer acompanhar da garantia efectiva do direito de todos a uma educação de qualidade, aferida em função da contribuição que os sistemas educativos devem dar para o progresso real e sustentável das sociedades e para que os cidadãos e os respectivos países se tornem cada vez mais competitivos, nos mercados nacionais e no mercado global.

De entre os organismos e mecanismos de controlo da qualidade da educação evidencia-se a Inspecção Educativa, que temos vindo a analisar em diferentes trabalhos[1]. Desta feita, propomo-nos abordar, em traços largos, o figurino jurídico actual da Inspecção Educativa em Cabo Verde.

Neste país, a Inspecção da Educação é, actualmente, regulada por escassos diplomas legais, três dos quais têm por objecto outras matérias e só parcialmente (ou mesmo residualmente) incluem normas relativas à organização interna, competências e atribuições da inspecção. São eles: a Lei Orgânica do Ministério da Educação (ME), o Estatuto do Ensino Privado e o Estatuto do Pessoal Docente, não abarcando estes dois últimos os níveis médio e superior. Passamos a analisá-los em seguida, sucintamente.

1.1. A Inspecção Educativa segundo a Lei Orgânica do Ministério da Educação

A Lei Orgânica do Ministério da Educação, aprovada pelo Decreto-Lei nº 25/2001, de 5 de Novembro[2], regula, nos seus artigos 19º a 21º, as competências e atribuições da Inspecção Educativa em Cabo Verde e bem assim alguns aspectos referentes à sua organização e funcionamento internos.

A actual Lei Orgânica do Ministério da Educação distingue, no seu artigo 19º, dois serviços de inspecção educativa, a saber: a) o serviço central de inspecção e fiscalização nas áreas de alfabetização e educação de adultos, de educação pré-escolar e básica e do ensino secundário, denominado Inspecção-Geral da Educação (artº 20º); b) o serviço central de inspecção e fiscalização nas áreas do ensino superior e ciência, cujas funções são exercidas, cumulativamente, pela Direcção-Geral do Ensino Superior e Ciência, podendo, entretanto, o Ministro da Educação, por despacho, atribuir estas últimas funções à Inspecção-geral da Educação.

Por outras palavras, não existe em Cabo Verde uma só Inspecção para todo o sistema educativo, como chegou a prever a Lei Orgânica do Ministério de Educação de 1987 (Decreto-Lei nº 116/87, de 6 de Novembro)[3], mas sim dois serviços de inspecção, ainda que a Inspecção-Geral da Educação possa exercer, supletiva e pontualmente, funções de controlo do ensino superior, em que o serviço de inspecção não se encontra devidamente estruturado, caracterizando-se pelo seu carácter difuso e pouco consequente. Em relação ao ensino médio, a Lei Orgânica nada diz, embora, na prática, tenha sido objecto de intervenções pontuais por parte da IGE.

De acordo com a Lei Orgânica do ME, a Inspecção-Geral da Educação (IGE), que até então se denominava Inspecção-Geral do Ensino[4], é o serviço central que se ocupa do acompanhamento, controlo e avaliação do funcionamento do sistema educativo, bem como de apoio técnico às escolas e serviços de base territorial do ME (nº 1 do artigo 20º).

Da análise deste normativo, ressaltam, aparentemente, quatro funções distintas da IGE, designadamente as de acompanhamento, controlo, avaliação e apoio técnico. Todavia, as quatro funções podem sintetizar-se numa só: a macro-função de Controlo, que é inerente a toda a Inspecção Educativa, qualquer que seja o Sistema Educativo que estiver em causa. Com efeito, é pacífico que o acompanhamento e a avaliação são formas de controlo. Também o é o apoio técnico que, podendo ter lugar no seguimento lógico de uma actividade de controlo, é também, em si próprio, uma forma de controlo: o chamado controlo preventivo, ex-ante, prévio ou antecedente, que visa criar condições (nomeadamente através de acções de capacitação) para que se evitem erros e fracassos, posto que vale mais prevenir que remediar.

Em termos de estruturação interna da IGE, a Lei Orgânica do ME é parca em normativas, estabelecendo, entretanto no nº 4 do artº 20, que, para a prossecução integral das suas funções, a Inspecção-Geral deverá organizar-se em Áreas de Coordenação (AC), a nível central, e em Núcleos de Inspecção (NI), a nível de um ou mais concelhos, sob a superintendência directa do Inspector-Geral, nos termos definidos por despacho do Ministro.

As competências e atribuições da IGE, que são exercidas em relação aos estabelecimentos de alfabetização e educação de adultos, de educação pré-escolar e básica e do ensino secundário, são explicitadas no nº 2 do artigo 20º, numa enumeração bastante detalhada, ainda que não exaustiva. Assim, à IGE são incumbidas, designadamente, as seguintes atribuições:

a) Proceder à avaliação integrada dos estabelecimentos de educação pré-escolar e básica, do ensino secundário e da alfabetização e educação de adultos, velando pela qualidade pedagógica do serviço educativo;
b) Realizar auditorias nas vertentes administrativa e financeira;
c) Apoiar no âmbito pedagógico e administrativo e financeiro os órgãos de direcção, administração e gestão dos estabelecimentos de ensino e delegações do MECD;
d) Fiscalizar a organização e o funcionamento do ensino público e privado, velando pela qualidade da formação ministrada, pela existência dos equipamentos e materiais indispensáveis a uma correcta acção educativa e por boas condições de segurança e de trabalho nas instituições educacionais;
e) Organizar e manter actualizado um sistema de informações sobre o funcionamento do sistema educativo, podendo solicitar esclarecimentos a todos os serviços do MECD, aos municípios e aos privados em geral;
f) Recolher informações e elaborar relatórios sobre as deficiências e anomalias pedagógicas, técnicas, administrativas e financeiras detectadas e sobre as carências de formação do pessoal docente e propor as medidas que considere adequadas à sua superação;
g) Realizar inspecções, averiguações e inquéritos, sindicâncias e auditorias de natureza pedagógica e administrativa e financeira[5] às escolas e delegações do MECD, sem prejuízo das competências próprias da Inspecção-Geral das Finanças e do serviço central de inspecção administrativa[6];
h) Receber, dar seguimento e resposta às reclamações e queixas dos cidadãos;
i) Exercer a acção disciplinar que se mostrar indispensável ou que lhe for determinada, procedendo, nomeadamente, à instauração, instrução ou orientação de processos disciplinares por acções ou omissões detectadas no âmbito do exercício das suas funções;
j) Elaborar inquéritos e averiguações aos serviços centrais do MECD sobre o cumprimento
das leis e a legalidade dos actos e contratos administrativos, por determinação superior;
k) Realizar inspecções aos serviços desconcentrados do MECD sobre o cumprimento das leis
e a legalidade dos actos e contratos administrativos;
l) Superintender no processo de avaliação de desempenho do pessoal docente;
m) Verificar e assegurar o cumprimento das disposições legais e das orientações
superiormente definidas;
n) Emitir parecer sobre os assuntos de natureza técnica e pedagógica que lhe forem
submetidos pelo Ministro;
o) Exercer outras atribuições que lhe forem cometidas superiormente ou resultem das normas
aplicáveis.

De referir que, em conformidade com o nº 2 do artº 21º, à inspecção e fiscalização no ensino superior são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as competências acabadas de citar.

Sistematizando as atribuições constantes do nº 1 do artº 20º, podemos agrupá-las, destacando as seguintes tipologias ou modalidades de acção inspectiva em Cabo Verde:
i) Avaliação (avaliação integrada de escolas) – alínea a)
ii) Auditoria (administrativas, financeiras e pedagógicas) – alíneas b) e g);
iii) Inspecção em sentido restrito (alíneas f), g), k)), averiguação, inquérito, sindicância e acção disciplinar (alíneas g), i) e j), m), que se integram genericamente na função de Fiscalização;
iv) Assessoramento técnico – alíneas c), n);
v) Supervisão ou superintendência – alíneas l), m);
vi) Provedoria da educação – alínea i);
vii) Organização de uma base de dados sobre o sistema educativo.

A respeito das cinco primeiras tipologias ou formas de desenvolvimento da acção inspectiva, que acabamos de enunciar, remetemos para trabalhos académicos de nossa autoria destinados a estudantes do Instituto Superior de Educação e da Universidade Jean Piaget de Cabo Verde[7].

Quanto à Provedoria, trata-se de um serviço que não existe ainda, como tal, no seio do Ministério da Educação em Cabo Verde, mas, na prática, a IGE vem realizando tarefas que corresponderiam a esse serviço. A Provedoria da Educação, que encontramos organizada no seio de IGE de Portugal, é um serviço disponibilizado aos utentes da educação, permitindo a estes apresentar queixas e reclamações para efeitos de análise, investigação, apuramento dos factos e seu devido encaminhamento para as entidades competentes para a tomada da decisão, sendo esta ulteriormente comunicada aos interessados. Como referimos, ainda não existe um serviço de provedoria educacional, mas, na prática, a IGE vem realizando essa actividade, sempre que instada a agir nesse campo.

Quanto à organização da Base de Dados, pretende-se que a IGE, com base nos diferentes mecanismos de controlo que utiliza, quer de controlo directo (relatórios de acções inspectivas) quer de controlo indirecto (informações obtidas de diferentes entidades), organize e mantenha, sempre actualizados, dados e informações sobre o sistema educativo em geral e cada uma das instituições ou serviços que o integram, de modo a que, em cada momento, se possa apreciar a situação e a performance da educação, permitindo, assim, a adopção, em bases fundadas, de medidas de política, actos legislativos e normativos ou medidas de gestão que se impuserem a cada situação.

Retomemos, entretanto, a análise da Lei Orgânica do ME na parte especificamente relacionada com a Inspecção.

Relevando o papel da Inspecção-Geral da Educação (IGE) no sistema educativo, o legislador consagrou, no nº 3 do artº 20º da Lei Orgânica, o dever de colaboração institucional entre a IGE e os demais serviços ou organismos do ME e da Administração Pública em geral, reputando essa colaboração como necessária ao bom desempenho das suas funções

Tendo em conta a correlação existente entre a Administração Educativa e a Administração Pública, a Lei Orgânica dispõe ainda que a Inspecção-Geral da Educação deve articular-se com os serviços de inspecção das finanças e da administração pública e outros organismos públicos vocacionados, podendo criar-se, nesse âmbito, grupos de inspecção, nos termos definidos por despacho conjunto dos membros do Governo interessados (nº 5 do artº 20º) .


1.2 – A Inspecção Educativa à luz do Estatuto do Ensino Privado

O Estatuto do Ensino Privado, aprovado pelo Decreto-lei nº 17/96/85, de 3 de Junho, estabelece as condições de intervenção da Inspecção Educativa em relação aos estabelecimento de ensino privado de nível pré-escolar, básico e secundário[8], conferindo-lhe, especificamente, algumas competências, tal como resulta dos artigos 8º 10º, 17º, 21º, 29º, 42º e 44º, designadamente:
a) “Verificar e assegurar o cumprimento das disposições legais pelos titulares e órgãos competentes dos estabelecimentos de ensino privado;
b) Organizar e manter actualizado um sistema de informações sobre o funcionamento do ensino privado;
c) Fiscalizar a organização e o funcionamento do ensino privado, velando pela qualidade da formação ministrada, pela existência dos equipamentos e materiais indispensáveis a uma correcta acção educativa e por boas condições de trabalho nos estabelecimentos de ensino;
d) Informar a Direcção-Geral do Ensino sobre as deficiências e anomalias detectadas, propondo as medidas que considere adequadas para a sua supressão;
e) Exercer a acção fiscalizadora e sancionatória decorrente do incumprimento da lei pelos titulares da licença e pelos directores pedagógicos;
f) Velar pelo cumprimento dos programas e planos de ensino;
g) Tudo o mais que lhe for cometido por lei ou por instruções do membro do Governo responsável pela área da Educação”(in artº 8º);
h) Exercer a inspecção pedagógica, financeira e administrativa sobre as escolas que beneficiem de quaisquer dos apoios previstos no diploma, designadamente através dos contratos de associação ou de patrocínio (artº 17º);
i) Formular à Direcção-Geral do Ensino Básico e Secundário parecer relativamente à criação de estabelecimentos de ensino, após constatação in loco da existência de condições físicas e materiais mínimas exigidas pelo mesmo diploma (artº 21º);
j) Proceder à abertura e encerramento de livros de termos de exame e de matrícula dos estabelecimentos de ensino privado (nº 8 do artº 29º);
k) Organizar e manter actualizado um cadastro confidencial do pessoal docente do ensino privado (nº 1 do artº 42º);
l) Exercer acção disciplinar e aplicar sanções de advertência escrita, coima de 1 a 30 dias, suspensão do exercício de funções até 2 meses aos docentes e membros das Direcções Pedagógicas que violem os seus deveres profissionais de natureza ou implicação pedagógica (nº 5 do artº 44º, conjugado com o nº 2 do mesmo artigo);
m) Exercer acção disciplinar e aplicar sanções de advertência escrita, coima de 200.000$ a 200.000$ às entidades proprietárias que violem o disposto no Estatuto do Ensino privado (nº 5 do artº 44º, conjugado com o nº 4 do mesmo artigo).

Refira-se ainda que a IGE, através do respectivo Inspector-Geral, integra o Conselho Consultivo do Ensino Privado, previsto no nº 5 do artº 10º do Estatuto do Ensino Privado, ao qual compete opinar sobre a política governamental para o ensino privado, acompanhar o funcionamento do ensino privado e formular propostas de melhoria, promover e estimular o exercício dos direitos e deveres contidos no referido diploma.

Refira-se que, sendo o Estatuto do Ensino Privado um diploma especial e considerando a relação existente entre lei especial e lei geral, deve entender-se que as normas desse estatuto devem orientar, naturalmente, a acção inspectiva desenvolvida pela IGE a nível das instituições educativas privadas. Todavia, as modalidades de acção inspectiva não se esgotam nessas normas jurídicas, aplicando-se ao ensino privado as normas constantes da lei geral, maxime da Lei Orgânica do ME. Assim, e ainda que, por exemplo, não se preveja no Estatuto do Ensino Privado, que data de 1985, a realização de auditorias e avaliações integradas das escolas privadas, tais modalidades de acção inspectiva podem ser utilizadas nesse sector do ensino por força do disposto na Lei Orgânica do ME.

1.3- A Inspecção Educativa segundo o Estatuto do Pessoal Docente

O Estatuto do Pessoal Docente dos estabelecimentos de educação pré-escolar, do ensino básico e secundário e da alfabetização e educação de adultos, aprovado pelo Decreto-Legislativo nº 2/2004, de 29 de Março, atribui ao Inspector-geral competência para instaurar processos disciplinares a docentes por infracções de que tenha conhecimento no exercício das suas funções (cf. Nº 3 do artº 73º). Esta competência vem na linha da consagrada expressamente na Lei Orgânica do ME quanto ao exercício, por iniciativa própria, da acção disciplinar, entendida como o poder de instauração e instrução de processos disciplinares.

Por outro lado, no nº 2 do seu artº 74º, o Estatuto do Pessoal Docente reserva à IGE a competência para a instauração de processos disciplinares de maior complexidade, ou seja, processos disciplinares em relação a docentes indiciados de prática de infracções disciplinares passíveis de punição com pena de inactividade, aposentação compulsiva e demissão, podendo os demais processos ser instruídos pelas escolas, ainda que sem afastar a possibilidade de intervenção da IGE, quer para a instrução de quaisquer processos instaurados pelo Inspector-Geral ou, v.g., pelo membro do Governo responsável pela Educação, quer para efeitos de análise e emissão de parecer sobre processos disciplinares instruídos por outras entidades e que devam, nos termos da lei, ser submetidos à decisão governamental.


II. CARREIRA E DEONTOLOGIA PROFISSIONAL DO INSPECTOR DE EDUCAÇÃO

A Inspecção da Educação é uma instituição servida por um corpo de profissionais denominados inspectores, cujo regime de carreira e deontologia profissional pretendemos analisar, à luz do quadro legal que vigora em Cabo Verde.

Assim, vejamos, em seguida, o que a este respeito preconiza o diploma vigente (o Decreto-Lei nº 36/96, de 23 de Setembro), fazendo uma brevíssima referência à carreira inspectiva e uma abordagem mais atenta, ainda que sucinta, à questão da deontologia profissional

2.1. Carreira de inspectores de educação

O Decreto-Lei nº 36/96, de 23 de Setembro, que cria e regula o quadro privativo de Inspecção de Educação em Cabo Verde, estabelece que a carreira inspectiva integra, actualmente, os cargos de Inspector-Adjunto, Inspector-Adjunto principal, Inspector, Inspector superior e Inspector principal (artigo 3º), definindo os requisitos para o provimento em cada um dos deles e bem assim para o desenvolvimento profissional na carreira (artº 4º). Refira-se que o desenvolvimento profissional, sob as formas de promoção (evolução vertical, ou seja, através da mudança de cargo ou referência) e de progressão (evolução na linha horizontal, ou seja, mediante mudança de escalão), processa-se nos termos da lei geral.

Do mesmo modo, o diploma apresenta no seu Anexo I, o conteúdo funcional de cada um dos cargos de inspector, cujo grau de complexidade aumenta em função da posição na hierarquia funcional.

A tabela remuneratória do pessoal de inspecção consta do Anexo III ao diploma em apreço que estatui, no artigo 7º, os direitos desse pessoal.

Assim, para além dos direitos previstos na lei geral para os funcionários da Administração Pública, o pessoal de inspecção, quando em serviço e sempre que necessário para o desempenho das suas funções, goza dos direitos de:

a) Ter acesso aos estabelecimentos de ensino público e privado, aos serviços centrais e desconcentrados, objecto de intervenção da Inspecção da Educação;
b) Utilizar, junto dos estabelecimentos de ensino, objecto de intervenção, instalações adequadas ao exercício das suas funções em condições de dignidade e eficácia;
c) Proceder ao exame de quaisquer elementos em poder de professores, coordenadores, gestores, serviços centrais e desconcentrados ou estabelecimentos de ensino, objecto de intervenção da Inspecção da Educação, quando se mostrem indispensáveis ao exercício das respectivas funções;
d) Usar cartão de identificação especial de modelo a aprovar pelo membro do Governo responsável pela educação.

Refira-se que o modelo de cartão de identificação a que se refere a última alínea do artigo 7º foi aprovado pela portaria nº 1/98, de 9 de Fevereiro.

De acordo com o artigo 11º do diploma em apreço, assiste a todos os professores, estabelecimentos de ensino, serviços centrais e desconcentrados o ministério da educação o dever de colaboração com o pessoal de Inspecção da Educação, prestando-lhe as informações indispensáveis ao cabal desempenho das suas funções.

O pessoal de inspecção tem ainda o direito de beneficiar de acções de formação profissional, tendo em vista a sua superação e desenvolvimento profissional e bem assim a modernização, a eficiência e a eficácia dos serviços de educação (artº 12º). Este é um autêntico direito-dever, posto que, como todo o funcionário, o inspector deve esforçar-se para melhorar a sua formação e tirar o melhor proveito das acções de formação que lhe forem disponibilizadas.

Quanto aos deveres e incompatibilidades, regulados nos artigos 8º a 12º, por constituírem o núcleo essencial da deontologia profissional do inspector de educação, analisamo-los no ponto que se segue.


2.2. Deontologia profissional do inspector de educação

2.2.1. Conceito e alcance

São inerentes aos paradigmas modernos ou emergentes de inspector de educação códigos de deontologia profissional que têm em comum normas essenciais, de natureza eminentemente jurídica mas com uma forte dimensão de ordem ética e moral.

Na verdade, a definição de qualquer deontologia profissional deve ser construída mediante a conjugação dos deveres profissionais consagrados pelo ordenamento jurídico-estadual com os deveres profissionais que relevam das chamadas normas de trato social, que a consciência colectiva reputa como sendo necessárias e quiçá indispensáveis a uma prática profissional salutar, em prol do interesse público.

A deontologia profissional do inspector de educação não foge à regra: o seu núcleo essencial é constituído pelas normas jurídicas que o Estado adopta para regular o exercício dessa profissão, especialmente em termos de deveres. No entanto, a esse núcleo essencial se associa, de forma harmónica, uma série de outras normas, de natureza técnica e de conteúdo moral e ético, que contribuem para moldar um código de conduta profissional próprio do inspector de educação.

A deontologia profissional do inspector de educação está intrinsecamente ligada à missão da educação: promover o desenvolvimento integral dos indivíduos, de modo a que, através de conhecimentos, atitudes e acções consequentes, possam, por um lado, contribuir para o bem comum e, por outro (e concomitantemente), para sua própria realização.

A missão de educar não se esgota, pois, no desenvolvimento de competências cognitivas, tendo, antes, dimensões éticas (traduzidas em valores, atitudes e comportamentos) que permitem contribuir para uma reprodução da sociedade e dos indivíduos numa escala sempre ascendente, ou seja, a perspectiva da sua realização crescente e da busca incessante de perfeição.

Encarada nas suas diversas e integradas dimensões, a educação é uma tarefa de toda a sociedade mas que apresenta desafios e responsabilidades específicas aos agentes educativos, em particular ao inspector, a quem cabe o papel de contribuir, tecnicamente, para que a educação cumpra as suas funções essenciais, a saber: o desenvolvimento intelectual, moral e social dos indivíduos; a promoção da cultura geral; o desenvolvimento dos automatismos básicos de aprendizagem; a preparação para o exercício da cidadania e a vida activa; a preparação e a orientação para o exercício ulterior de uma profissão.

Se é evidente a perspectiva axiológica da educação, não menos evidente será o papel daquele (referimo-nos ao inspector) cuja profissão é contribuir para que toda a sociedade (que financia a educação, porque dela precisa) possa beneficiar de um serviço educativo de qualidade.

Por ser uma profissional que orienta a sua acção no sentido de, em cooperação com as instituições educativas, promover a realização de uma obra educativa ao serviço de toda a sociedade, o inspector de educação possui um código de conduta profissional exigente, cujo núcleo essencial vem definido na legislação vigente, que vamos abordar nos seus traços essenciais.

2.2.2. A deontologia profissional do inspector à luz do direito vigente

Ante de mais, importa relevar que ao inspector da educação, enquanto funcionário público, são aplicáveis as normas jurídicas por que se rege o funcionalismo público em geral, sem prejuízo das que lhe são específicas. Assim, a deontologia profissional do inspector inclui, essencialmente, os deveres dos funcionários em geral, os deveres que o ordenamento jurídico prescreve aos inspectores da administração pública[9] e, muito especialmente, os deveres do inspector de educação.

É certo que a deontologia profissional não se esgota nos deveres jurídicos, mas estes, como vimos, constituem o seu núcleo essencial, tanto mais que, enquanto normas jurídicas, são de cumprimento obrigatório, incorrendo o respectivo infractor em procedimento disciplinar.

Por outro lado, a deontologia profissional do inspector não pode ser bem apreendida fora do quadro normativo por que se rege a Inspecção Educativa, razão por que das próprias competências atribuídas a este serviço central do ministério da educação derivam princípios e normas de conduta do inspector no desenvolvimento das diversas modalidades de acção inspectiva. Assim, por exemplo, ao cometer-se à IGE competência para a realização de auditorias, inquéritos, sindicâncias, etc., exige-se ao inspector, a par de competência técnica específica para a boa execução de tais tarefas, a observância de um conjunto regras deontológicas como: legalidade, objectividade, isenção, imparcialidade, apartidarismo, discrição, sigilo profissional, lealdade institucional, zelo, urbanidade, exemplaridade e probidade na vida privada e social, aperfeiçoamento profissional, etc.

Na verdade, há um vasto conjunto de normas deontológicas que deve impregnar a actividade profissional do inspector de educação, tal como resulta, aliás, de forma expressa, no artigo 8º do Decreto-Lei nº 36/96, de 23 de Setembro.

2.2.1.Deveres especiais do inspector

À luz artigo 8º do Decreto-Lei nº 36/96, para além dos deveres gerais inerentes ao exercício da função pública – ou seja, dos deveres gerais dos funcionários da Administração Pública constantes do EDAAP (Estatuto Disciplinar dos Agentes da Administração Pública), constituem deveres específicos do inspector:
a) Ser discreto nos serviços de que estiver encarregado;
b) Ter conduta social compatível com as funções que desempenha;
c) Guardar sigilo absoluto em relação a todos os assuntos de que tiver conhecimento no exercício ou por causa do exercício dessas funções;
d) Ter uma postura de imparcialidade no exercício das suas funções;
e) Zelar pela aplicação das leis, orientações técnicas e metodologias que possam contribuir para a melhoria do desempenho dos professores e dos estabelecimentos de ensino, nomeadamente na promoção da qualidade do ensino e na racionalização da gestão e planificação escolares”.

Constitui ainda dever do pessoal de inspecção trabalhar em estreita articulação com os
professores, estabelecimentos de ensino e serviços centrais e desconcentrados do ministério da educação.

2.2.2. Deveres gerais do inspector enquanto funcionário público

Considerando que, nos termos do artigo 8º do diploma em análise (Decreto-Lei nº 36/96, de 23 de Setembro), são aplicáveis ao inspector de educação os deveres gerais dos funcionários, importa considerar o que a este respeito prescreve o EDAAP, no seu artigo 3º. Assim, a observância da legalidade, a prossecução do interesse geral, a isenção, a imparcialidade, o apartidarismo, a lealdade institucional, a urbanidade, o respeito e a consideração dos outros, a probidade, o segredo profissional integram-se nos deveres gerais do funcionário público (logo, do inspector de educação), que passamos a transcrever na íntegra:

a) Respeitar a Constituição, os símbolos nacionais, as instituições da república e respectivos titulares;
b) Respeitar e garantir o livre exercício dos direitos e liberdades e o cumprimento dos deveres constitucionais e legais dos cidadãos;
c) Estar ao serviço do interesse geral definido pelos órgãos competentes da Administração Pública, nos termos da lei e de harmonia com ordens e instruções legítimas dimanadas dos superiores hierárquicos;
d) Observar e fazer observar, rigorosamente, os regulamentos;
e) Assegurar a eficácia, o prestígio e a dignidade da Administração Pública, participar activamente na realização dos objectivos e defender os interesses do Estado;
f) Agir com isenção, imparcialidade e rigoroso apartidarismo político, em ordem a criar no público confiança na acção da Administração Pública;
g) Cultivar a lealdade institucional, a pontualidade, assiduidade, o rigor, o escrúpulo, desenvolver o espírito de iniciativa, a produtividade, a competência e o zelo profissional e contribuir para a prestação de um serviço público de qualidade;
h)Cumprir exacta, imediata e lealmente as ordens ou instruções, escritas ou verbais, dos superiores hierárquicos em objecto de serviço, salvo se a ordem ou instrução implicar a prática de crime e sem prejuízo do direito de respeitosa representação;
i) Tratar com urbanidade e respeito os utentes dos serviços públicos e ser-lhes prestável, designadamente, dando satisfação célere às suas solicitações legítimas, adoptando o procedimento legal que lhes seja mais favorável, não lhes exigindo formalidades ou pagamentos não impostos expressamente por lei ou regulamento e não lhes provocando incómodos, perdas de tempo ou gastos desnecessários;
j) Dar prioridade, no atendimento, às pessoas idosas, doentes ou com deficiência, às grávidas, aos menores e a outras pessoas em situação de vulnerabilidade;
l) Agir com correcção e consideração para com os superiores hierárquicos, colegas e subordinados;
m) Guardar segredo profissional relativamente aos assuntos de que tenham conhecimento em virtude do exercício das suas funções e sobre os quais não tenham autorização do respectivo superior hierárquico para a sua revelação ao público, sem prejuízo do direito dos cidadãos a serem informados obre o andamento dos processos em que sejam directamente interessados e do direito de acesso dos cidadãos a arquivos e registos administrativos, nos termos das leis e regulamentos;
n) Proceder disciplinarmente, nos termos da lei, relativamente às infracções praticadas pelos seus subordinados e participar superiormente as que exijam intervenção de outras autoridades;
o) Avaliar o desempenho dos seus subordinados e informar a respeito dos mesmos, com rigor, isenção e justiça;
p) Aperfeiçoar a sua formação profissional, nomeadamente, no que respeita às matérias que interessam às funções que exerçam;
q) Não solicitar nem retirar vantagens de qualquer natureza das funções que desempenham e agir com independência e isenção em relação aos interesses e pressões particulares;
r) Agir, na sua vida privada, com probidade de modo a não desprestigiar a função que exercem”.

2.2.3. Incompatibilidades

Por outro lado, o Decreto-Lei nº 36/96 estabelece, no seu artigo 9º, as incompatibilidades a que se sujeita o inspector no exercício efectivo das suas funções, traduzindo a preocupação de evitar que ele se coloque numa posição passível de suspeição quanto ao desempenho imparcial das suas atribuições.

Assim, além das incompatibilidades estabelecidas na lei, esse artigo estipula que é vedado ao inspector:
a) “Exercer acções inspectivas nas situações em que sejam visados parentes ou afins, em qualquer grau da linha recta ou até ao terceiro grau da linha colateral;
b) “Ser proprietário ou sócio de entidade proprietária de estabelecimentos de ensino privado;
c) Exercer actividade docente ou de direcção pedagógica nos estabelecimentos de ensino público ou privado.”

O inspector de educação incorre ainda noutras incompatibilidades, previstas na lei para o funcionário público, designadamente o exercício de actividade profissional privada concorrente ou conflituante com a do respectivo cargo público (cf. artº 24º do Decreto-Legislativo nº 2/95, de 20 de Junho de 1995.

Outrossim, o Código Eleitoral vigente, no seu artigo 9º, alínea c), estabelece que os inspectores da administração pública são inelegíveis aos cargos políticos, procurando-se, com esta incompatibilidade, reforçar o princípios da neutralidade e da imparcialidade do inspector (nomeadamente o da educação), cuja actividade profissional não pode ser prosseguida de modo a favorecer quaisquer candidaturas ou forças políticas concorrentes às eleições.


Praia, Maio de 2006.

Bartolomeu L. Varela
Inspector Superior de Educação








[1] Ver, de entre outros trabalhos recentes, de apoio didáctico a estudantes do Instituto Superior de Educação e da Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, os seguintes: Modelos ou paradigmas de Inspecção Educativa (2006); Inspecção Educativa – paradigmas, modalidades e características de actuação (2006).
[2] A actual Lei Orgânica do departamento governamental responsável pela educação data do início da anterior Legislatura, ou seja, de há cinco anos, mostrando-se necessária a sua revisão, de modo a ajustar-se, por um lado, às alterações introduzidas, desde então, na configuração do referido departamento e, por outro lado, às exigências decorrentes da evolução que entretanto se vêm registando no sector da educação à escala planetária.
[3] A Lei Orgânica de então dizia, no seu artº 34º, que “a Inspecção-Geral é um serviço central de controlo do funcionamento do Sistema Nacional de Educação”, definição retomada no Decreto nº 160/90, de 22 de Dezembro, que desenvolve a Lei Orgânica de 1987. Não obstante, a Inspecção-Geral não chegou a desenvolver a função de controlo no ensino superior, privilegiando o ensino primário, com uma ténue intervenção em relação ao ensino secundário. Nos anos 90, a Inspecção-Geral irá assumir, de forma mais ou menos cabal, o ensino secundário, ficando, fora da sua alçada o ensino superior, em relação ao qual só passou a intervir, pontualmente, por determinação do membro do governo responsável pela educação. Todavia, só na Lei Orgânica actualmente em vigor se consagra juridicamente a possibilidade dessa intervenção pontual no ensino superior.
[4] Obviamente, não se trata de uma mera mudança de nome, querendo-se com a nova denominação, assim como com a revisão das competências e atribuições da Inspecção-Geral, configurar um novo paradigma de inspecção educativa, na linha das tendências mais recentes.
[5] A realização de auditorias administrativas e financeiras já consta da alínea b) do artigo, verificando-se, pois aqui, uma repetição, que convém evitar na próxima Lei Orgânica.
[6] As inspecções das Finanças e da Administração Pública podem realizar acções inspectivas para controlarem o cumprimento, respectivamente, das normas de gestão financeira e orçamental e das normas de organização e funcionamento da Administração Pública aplicáveis à Administração Educativa.
[7] Cf., nomeadamente, Manual de Auditoria Pedagógica (2004), Manual de Acção Disciplinar (2005) e Manual de Estrutura e Funcionamento do Sistema Educativo (2006); Modelos ou paradigmas de Inspecção Educativa (2006); Inspecção Educativa – paradigmas, modalidades e características de actuação (2006).

[8] Enquanto não é aprovado um Estatuto do Ensino Superior, vigora o Decreto-Lei nº 65/2005, de 24 de Outubro, que regula as condições a que devem obedecer a criação e o funcionamento de estabelecimentos privados de ensino superior em Cabo Verde, diploma esse que não se refere especificamente à Inspecção Educativa, o que não quer dizer que o ensino superior privado não deva ser controlado pela Inspecção Educativa. Com efeito, quer a Direcção-Geral do Ensino Superior (que acumula ainda a função de inspecção de ensino superior), quer a IGE (esta sempre por despacho ministerial), podem realizar acções inspectivas nesse nível de ensino, tanto público como privado.
[9] Actualmente, não existem inspectores da Administração Pública em geral, mas sim de diversos sectores da mesma, como: inspectores de finanças, inspectores tributários, inspectores de actividades económicas, inspectores do trabalho, inspectores judiciários e inspectores de educação.

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